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  • Foto do escritorMarcelo F Carmo

O doce de batata doce

Atualizado: 14 de out. de 2020


É quase uma unanimidade a boa relação entre os doces e as crianças. Com o passar dos anos os doces também evoluíram. Hoje apresentam-se numa grande oferta e diversidade - seguem saltando aos olhos dos pequeninos. Lá pelos anos 80, nossos desejos de consumo “docílicos” eram mais escassos e bem mais artesanais.

Lembro da cesta de natal que meu pai recebia da empresa; o que mais me encantava era a bolacha champanhe, ameixa preta e pêssego em caldas. Era uma época do ano muito especial, ficaram marcadas em minhas memórias, pois só voltaríamos á ver estes doces daqui 12 meses - isso se, meu pai não fosse demitido antes, não eram todas as empresas que faziam esse agrado. Lembro ter tido essa sensação agradável algumas vezes - o Seu Geraldo era um bom funcionário, não questionava os patrões, fator preponderante para garantir sua estabilidade profissional (até hoje a regra é válida) -, minha mãe era encarregada pela distribuição dos suprimentos, a bolacha champanhe - ah que delícia, polvilhada com açúcar cristal - era dividida em três partes iguais, minha mãe se abdicava desse prazer para contemplar os filhos. E aí era uma guerra, ficávamos disputando quem comia mais lentamente para pirraçar o outro - uma pequena demonstração da maldade humana que habita em nós -, depois da bolacha, não no mesmo dia, tínhamos ainda o estágio de contemplar as latas de pêssego e ameixa em cima do armário. Geralmente em um domingo especial minha mãe nos surpreendia com a abertura de uma dessas latas. Era um cerimonial excitante, punha a lata na mesa, pegava o abridor de latas enferrujado, fazia o primeiro furo e daí em diante ia rasgando o metal e trazendo a tona o doce que tanto nos encantava. Puxava a tampa pra cima, com cuidado pra não cortar o dedo. Nesse intervalo eu já ia pegando os “pires”- minha mãe chamava assim os potinhos de sobremesa, muito pouco usados lá em casa -, pois nos doces em calda a família toda participava (5 partes iguais). Confesso que a lata sempre enganava, mais calda do que frutas.

Nessas oportunidades minha mãe sempre dizia assim:” Doce é bom assim! - muito doce enjoa.”E seguia contando a história de sua irmã caçula - Tia Aparecida. Certa vez ao visitarem uma família amiga de meus avós - Seu Abílio e Dona Adelina -, lhes fora oferecido um doce de batata doce (doce docílimo, sugere-se degustar pequenas porções), os anfitrões conhecendo as particularidades do doce, o ofereceram em pequenas porções, minha tia Aparecida - a caçula mimada e dengosa - não sabia dessa fundamental informação. Minha mãe conta - ela “danou” a fazer pirraça para ganhar uma porção maior, foi alertada por sua mãe, mas não obedeceu, seguiu com sua pirraça. Meu avô pavio curto, perdeu a paciência e disse ao seu compadre: “Trás uma lata de goiabada pra mim ‘cumpadi’! - hoje vou ensinar essa guria.” Meu avô pegou três colheradas, das grandes, e colocou na latinha :”Toma Aparecida!” Ela pegou a latinha e não deu tempo nem de sentar - já percebeu na primeira colherada que não suportaria tanta doçura. Olhou para o seu papai e disse:”quero mar não!”- meu avô olhou friamente pra ela e disse de forma enérgica e incontestável:”agora vai comer tudo e de boca calada.” Minha tia foi convencida - mesmo que coercitivamente - a comer aquela pratada, ou melhor, latada de doce de batata doce e sem dar um piu - ouvi esta narrativa diversas vezes.

Esta era a lição que minha mãe nos dava para não ficarmos querendo comer muito doce. Doce de mais enjoa. As latas de frutas em calda nunca nos levou ao extremo da doçura - como minha tia. Mas a lição ficou, e sempre lembro dessa história com esta poesia que desconheço a autoria:

“O doce perguntou perguntou pro doce;

qual é o doce mais doce que o doce de batata doce?

O doce respondeu pro doce:

que o doce mais doce que o doce de batata doce!

É o doce de batata doce.”

Mais uma das histórias que a dona Ilda - minha mãe - nos contava docilmente, sempre afim de nos ensinar algo. Mais uma da série minha infância - tempo que essas história não tinham H. Doces e doces istórias.


Marcelo F Carmo

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