top of page
  • Foto do escritorMarcelo F Carmo

O tempo e as jabuticabas — Rubem Alves


'Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora. Sinto-me como aquela menina que ganhou uma bacia de jabuticabas.

As primeiras, ela chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.

Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.

Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados. Não tolero gabolices.

Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.

Já não tenho tempo para projetos megalomaníacos.

Não participarei de conferências que estabelecem prazos fixos para reverter a miséria do mundo. Não quero que me convidem para eventos de um fim-de-semana com a proposta de abalar o milênio.

Já não tenho tempo para reuniões intermináveis para discutir estatutos, normas, procedimentos e regimentos internos.

Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos.

Não quero ver os ponteiros do relógio avançando em reuniões de'confrontação', onde 'tiramos fatos a limpo'.

Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário-geral do coral.

Lembrei-me agora de Mário de Andrade que afirmou: 'as pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos'.

Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa...

Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade, defende a dignidade dos marginalizados, e deseja tão-somente andar ao lado do que é justo.

Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade, desfrutar desse amor absolutamente sem fraudes, nunca será perda de tempo.'O essencial faz a vida valer a pena.


Rubem Alves

62 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Não sei…

Não sei… Se a vida é curta Ou longa demais pra nós, Mas sei que nada do que vivemos Tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas. Muitas vezes basta ser: Colo que acolhe, Braço que envolve, Palav

Que país é este?

1 Uma coisa é um país, outra um ajuntamento. Uma coisa é um país, outra um regimento. Uma coisa é um país, outra o confinamento. Mas já soube datas, guerras, estátuas usei caderno "Avante" — e desfile

Socorro

socorro, eu não estou sentindo nada. nem medo, nem calor, nem fogo, não vai dar mais pra chorar nem pra rir. socorro, alguma alma, mesmo que penada, me empreste suas penas. já não sinto amor nem dor,

bottom of page