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  • Foto do escritorMarcelo F Carmo

Que país é este?


1


Uma coisa é um país,

outra um ajuntamento.


Uma coisa é um país,

outra um regimento.


Uma coisa é um país,

outra o confinamento.


Mas já soube datas, guerras, estátuas

usei caderno "Avante"

— e desfilei de tênis para o ditador.

Vinha de um "berço esplêndido" para um "futuro radioso"

e éramos maiores em tudo

— discursando rios e pretensão.


Uma coisa é um país,

outra um fingimento.


Uma coisa é um país,

outra um monumento.


Uma coisa é um país,

outra o aviltamento.


(...)


2


Há 500 anos caçamos índios e operários,

há 500 anos queimamos árvores e hereges,

há 500 anos estupramos livros e mulheres,

há 500 anos sugamos negras e aluguéis.


Há 500 anos dizemos:

que o futuro a Deus pertence,

que Deus nasceu na Bahia,

que São Jorge é que é guerreiro,

que do amanhã ninguém sabe,

que conosco ninguém pode,

que quem não pode sacode.


Há 500 anos somos pretos de alma branca,

não somos nada violentos,

quem espera sempre alcança

e quem não chora não mama

ou quem tem padrinho vivo

não morre nunca pagão.


Há 500 anos propalamos:

este é o país do futuro,

antes tarde do que nunca,

mais vale quem Deus ajuda

e a Europa ainda se curva.


Há 500 anos

somos raposas verdes

colhendo uvas com os olhos,


semeamos promessa e vento

com tempestades na boca,


sonhamos a paz da Suécia

com suíças militares,


vendemos siris na estrada

e papagaios em Haia,


senzalamos casas-grandes

e sobradamos mocambos,


bebemos cachaça e brahma

joaquim silvério e derrama,


a polícia nos dispersa

e o futebol nos conclama,


cantamos salve-rainhas

e salve-se quem puder,


pois Jesus Cristo nos mata

num carnaval de mulatas.


(...)



Publicado no livro Que país é este? e outros poemas (1980).


In: SANT'ANNA, Affonso Romano de. A poesia possível. Rio de Janeiro: Rocco,

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